5 de dezembro de 2013

O Homem e o Iceberg

"Nós não fazemos outra coisa, não é? 
Olhar para as coisas e provar bebidas novas"
Hemingway em "Elefantes Brancos"

O homem no bar tem um problema. Algo que não diz e não consegue dizer, que não fala e não consegue falar, que não expressa e nem consegue expressar. Uma série de pessoas estão ao seu redor. O cara comemorando o sucesso no vestibular e os próximos oito anos em medicina. A garota que, depois de tanto tempo, foi pedida em namoro. A despedida do colega mais inteligente e prestativo do trabalho que pagou a rodada para os amigos, porque em terra de jornalismo, CLT é rei.

Pessoas felizes passaram ao lado do homem no bar que tinha um problema, mas ninguém sabia o que era. E pra falar a verdade, ninguém notou também. Pediu uma bebida para disfarçar algo que não queria dizer, esquecer algo que não queria falar, deixar pra lá algo que não queria expressar. 

"Qual bebida o senhor vai querer?", disse o barman
"A mais forte", respondeu
"Dia difícil?"
"Ninguém fala sobre a parte debaixo do iceberg."

Entretido em si mesmo, o homem que tem um problema tomou whisk. Bons copos de whisk. E voltou a analisar a profundidade dos acontecimentos.

"Eu não falo muito sobre você, porque tudo está muito além do que pode ser visto. Poucas pessoas entenderiam", disse o homem
"Então você bebe?", respondeu o iceberg
"Bebo e escrevo. Como todos os grandes caras."
"Mas se você escreve, é claro que você fala sobre mim. E deve ser horrível as pessoas saberem que você sofreu. E foi tanto, que você precisou escrever, botar pra fora, 'enfiar um dedo na garganta'.
"Nem tudo. Às vezes eu só deixo a sua ponta movimentar o texto dando a ideia da história sem ser exatamente claro com a profundidade do tema ou da situação. Às vezes eu só deixo todos verem o que realmente podem ver."
"Falando assim, você até parece frio. O que você não é e nem  nunca será. Mas a verdade é que todos sabem que seu texto nasceu de algo muito maior e profundo do que qualquer frase possa expressar, tipo a minha parte debaixo"

Foi então que o homem debateu com o iceberg todos os textos que nasceram de algum conflito interno, de parágrafos formados para não dizer ou expressar tudo e das frases que nasceram para serem sutís.E não pense que existe um motivo poético ou uma construção criativa para não falar exatamente sobre a parte debaixo de nós. Às vezes escritores realmente não sabem como dizer ou explicar, e escrevem justamente para tentar entender.

"Eu sei que você tem um problema pelo número de copos de whisk que tomou", disse o iceberg
"Eu sei que você é um problema pelo texto que fez eu escrever", respondeu o homem.

Foi então que o homem sentado sozinho no bar parou de conversar consigo mesmo, pediu mais um copo de whisk e iniciou outro conto no papel. Isso para disfarçar algo que não sabia como dizer, esquecer algo que não sabia como falar, disfarçar algo que não sabia como expressar. Uma série de pessoas estavam ao seu redor. O futuro médico sendo carregado pelos amigos, a mulher e o seu novo velho namorado e o jornalista-rei falando sobre o chefe.

"Dia difícil?" - disse o barman
"Nós não fazemos outra coisa, não é? Olhar para o que não entendemos e escrever coisas novas", respondeu o homem

Letícia Cardoso

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